José Police Neto: o desafio do déficit habitacional
Para José Police Neto, autor da lei da Função Social da Propriedade Urbana no Município de São Paulo – uma das mais relevantes de sua atuação na Câmara de Vereadores, que chegou a presidir –, é preciso tratar da questão da moradia como “política pública, não setorial” e investir em sistemas de locação incentivada.
José Police Neto é um pesquisador social, e autor da lei da Função Social da Propriedade no Município de São Paulo (15.234/2010). (Foto: Reprodução/Insper)
Moradia é um dos direitos sociais garantidos no Artigo 6º da Constituição Federal – ao lado da saúde e da educação, por exemplo. Entretanto, basta passar por algumas praças do centro da capital paulista para constatar a distância que separa a letra da Carta Magna brasileira da geografia humana, ou desumana, da metrópole mais rica do país. “Aquilo virou um campo de refugiados – refugiados urbanos”, diz, com indisfarçável amargura, o ex-vereador José Police Neto, autor da lei da Função Social da Propriedade no Município de São Paulo (15.234/2010).
Não precisava ser assim, atesta ele. O último censo, de 2010, apontava que existiam 420 mil imóveis ociosos na metrópole paulistana. Hoje, segundo Police, o número é próximo de 500 mil. É como se a cidade sofresse de um outro tipo de déficit na moradia: o de atenção.
Com quatro mandatos exercidos na Câmara de São Paulo, de 2005 a 2021, o ex-vereador, que presidiu o Legislativo Municipal entre 2011 e 2012, ocupa desde janeiro do ano passado o cargo de superintendente da Unidade de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Prefeitura de Santo André. Estar longe da cidade em que construiu sua carreira não o incomoda. Ao contrário: “O fato de eu não ser um ator político da região, gerou, claro, um incômodo inicial, mas também uma vantagem, porque eu não disputo com ninguém dali. Costumo falar: ‘Eu não concorro com nenhum de vocês, portanto eu sou o garçom. Me deixem trazer o menu de opções que vocês têm”, relata ele.
Espelhando-se em experiências bem-sucedidas mundo afora, Police aposta em uma aproximação da administração municipal com a academia: “Estou tentando transformar Santo André em uma ‘cidade–campus’, com seus dados abertos a todos os pesquisadores”. Compartilhar o conhecimento, aliás, é a proposta do ex-vereador à frente do Grupo de Trabalho (GT) sobre moradia montado no Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.
“A pandemia, pelo modo mais sofrido, abriu o nosso olho. A sociedade é solidária. Ela sente que precisa produzir cidades que tenham equidade: de gênero, de oportunidades etc.”, acredita Police. Para tanto, afirma, deve prevalecer o que chama de empatia cívica. “Empatia não é se colocar no lugar do outro? Vamos agora nos colocar no lugar do outro coletivamente”, explica ele.
Colocar-se no lugar do outro: é exatamente isso o que Police faz na entrevista a seguir.
Programas de habitação popular no Brasil remontam ao século XIX – e no entanto, como se sabe, a moradia, incluída na Constituição de 1988 entre os diretos e garantias fundamentais, segue sendo um dos graves problemas sociais do país. Um estudo da Fundação João Pinheiro revelou que em 2019 o déficit habitacional no Brasil rondava a casa, por assim dizer, das 5,8 milhões de moradias, das quais 79% se concentravam em famílias de baixa renda. Mais da metade do déficit se devia, segundo a entidade, ao elevado valor do aluguel urbano. Com a pandemia, o quadro seguramente se agravou. Os próprios dados de 2019 já indicavam uma piora da situação em relação ao ano anterior. Quais têm sido os principais erros do país no enfrentamento desse desafio?
Vou começar por uma questão pouco abordada, mas é muito importante a gente ter esta compreensão conceitual. O Brasil, durante muito tempo, tratou – e parte da sociedade ainda vem tratando – habitação como “política setorial”, porque isso interessa aos que economicamente se abastecem dela, e não como “política pública”. Como é geradora de riqueza, pois quem a produz tem lucro, a habitação nunca esteve equiparada, do ponto de vista do gestor público, à saúde e à educação. Nessas duas áreas, o gestor público sempre teve a obrigação de apresentar “políticas públicas” – não apenas “programas”. Não se apresentava um “programa de educação” ou um “programa de saúde” e sim uma “política pública de educação”, uma “política pública de saúde”. É por isso que você tem o Sistema Único de Saúde, o SUS, e também o acesso universal ao ensino básico. Na habitação, isso não existe. Então, o primeiro problema é este: a habitação, historicamente, foi tocada como política setorial porque você tem a indústria da construção produzindo moradias.
Quando você discute desenvolvimento de cidade e entra na questão habitacional, fala com quem? Com o mercado. Você não fala com um gestor público. Fica aquela disputa: “O mercado está ganhando dinheiro! O mercado está querendo o quê?” Nós temos um nó aí. Se moradia é um direito garantido pela Constituição, a gente já começa com um atraso infernal. Você tem que vencer uma disputa pontual, porque muitas vezes, se o seu discurso é “pró-habitação”, o reconhecimento por parte da sociedade é de que se trata de um discurso “pró-mercado”.
Mas o problema vai além. Dentro desse ambiente chamado “mercado”, você tem um sistema que o financia, e a maior parte dele é privado. Não custa lembrar que o setor privado do financiamento de moradia é maior que o público; na saúde e na educação ocorre o contrário. E na habitação você tem um setor privado que constrói mais que o público. Então, a verdade é que precisamos, primeiramente, superar esse… não vou dizer “erro”: foi assim que ele se processou ao longo da história. O extinto BNH [Banco Nacional da Habitação] não foi capaz de encontrar sucessores para você ter uma política social pública de oferta de teto decente, de moradia digna.
Quando as pesquisas são apresentadas e você tem lá quase 6 milhões de unidades como déficit, a gente está falando de um déficit do hipossuficiente, daquele que não recebe nem três salários mínimos, porque de três a seis você já está trabalhando com uma porção da sociedade que, empurrando um pouquinho pra cá, empurrando um pouquinho pra lá, o mercado já consegue oferecer alguma coisa. Esse pessoal se encaixa nas regras de financiamento que estão à disposição.
E quem não se encaixa, é expulso para a periferia…
Eu costumo dizer que a cidade de São Paulo oferece mais subsídio para a pessoa morar mal e longe do trabalho do que para morar melhor e perto. Você não subsidia unidade habitacional no Centro e paga de subsídio para a pessoa ser transportada por duas horas da periferia até a área central da cidade. Se pegássemos essa dinheirama e viabilizássemos a habitação no Centro, a mesma pessoa moraria melhor e perto do trabalho.
Falei “São Paulo”, mas isso se repete em n outras localidades do Brasil, porque não se reconhece ainda no país o desenvolvimento da cidade a partir da espacialização do viver das pessoas como uma política pública, bem fundada, bem elaborada, passando pelos três entes federados – União, estados e municípios. Aliás, muitas vezes esses três entes se envolvem até em disputa; não se alinham. Cada governo tem um modelo. Não há continuidade porque, de novo, não existe nenhuma política pública; existem, no máximo, programas. E eu nem digo que sejam “programas de governo”; são “de governantes”. Não se tem, por exemplo, um grande sistema de locação social, de locação coletiva, de locação incentivada – um serviço de incentivo de moradia e não de propriedade.
Prevalece a ideia de que o indivíduo tem de ser “dono” da habitação.
A percepção que eu tenho é exatamente essa. Acreditou-se demais na ideia de que todo mundo precisa ser dono de um pedacinho de terra porque a propriedade é que daria uma condição de bem viver para a pessoa. Observem o seguinte: no Brasil, o financiamento que você tem hoje normalmente leva 30 anos para pagar. Se você escolhe um imóvel que não é aquele do sonho da sua família, que não está ajustado para a sua família, ele vai escravizá-lo naquele emprego circunstancial em que você estava no momento em que contratou a dívida. E você vai perder a moradia se ficar desempregado! Temos que garantir “serviço de moradia” – “serviço”, eu insisto, não “propriedade”.
Qual a maneira efetiva de se fazer isso?
Um dos caminhos já está dentro do Estatuto da Cidade, de 2001: forçar a função social da cidade a partir da função social da propriedade urbana. Quem não cumpre a função social você pune com IPTU progressivo no tempo, com o PEUC [Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios]. Com isso, você abastece os fundos municipais que acabarão financiando o modelo de serviço de moradia. Ou seja, na realidade, já temos algumas soluções para o problema. A questão é que esse tema não vem sendo trabalhado pelo Legislativo, pelo Executivo, nem mesmo pelos candidatos – vamos lembrar que estamos em ano de eleição. Carmen Silva, líder do MSTC [Movimento Sem Teto do Centro] faz questão de lembrar, com toda a razão, que se você não tem moradia digna, você não consegue garantir nem saúde nem educação. O sujeito vai estar doente sempre e nunca a educação gerada para aquela família e suas futuras gerações será capaz de permitir a superação da falta de uma casa.
Quanto mais cidade se produz pelo mercado, mais cidade você tem que produzir para aquele que não tem acesso a esse mesmo mercado. É obrigação do município garantir isso. Não é só fazer um Plano Diretor, não é só fazer leis. Para além disso, há a obrigação de incrementar uma política de desenvolvimento urbano que assegure o mínimo para os territórios vulneráveis – incluindo nesse “mínimo” um teto digno.
O senhor chamou a atenção para a diferença de atendimento por faixas salariais, destacando que se ganhar de três a seis salários mínimos a pessoa já passa a integrar um nicho que o mercado dá preferência com prioridade. Analisando em retrospecto, é preciso frisar que o próprio BNH olhava para o indivíduo que tinha carteira assinada. Pois bem: nos últimos anos, se a informalidade já era enorme, ela só se acentuou com a pandemia. Como estruturar uma “política”, e não um “programa” habitacional considerando essas variáveis? E, sim: o senhor enfatizou a importância do aluguel social, entretanto aí não pesaria também uma questão cultural? O “sonho”, via de regra, é o da “casa própria” e não o da “locação própria”…
Mas essa é uma visão clássica “nossa”, da classe média. Se a gente vai para uma comunidade da periferia, o indivíduo não é dono de coisa alguma. Experimentem falar, num território daqueles, em “cartório”, em “matrícula”. Ninguém sabe do que se trata. Uma parte considerável da população – e vou dizer que é a ampla maioria daqueles quase 6 milhões apontados pela Fundação João Pinheiro – quer apenas um teto digno. Aquelas pessoas não estão preocupadas em ser “donas”. Querem ter a garantia de um lugar para dormir, para tomar banho, para comer algo direito, entendem? De preferência, perto do trabalho, perto da escola.
Então, onde a gente errou? A gente erra ao desenhar políticas públicas que servem para nós mesmos. Por que digo isso? Porque a classe média é assim: ela só se sente segura se tem um imóvel e aposentadoria. Se for uma aposentadoria pública, com 100% dos rendimentos, e não a do INSS, melhor ainda. Esse, contudo, é o modelo da classe média tradicional. Nossa tendência é encaixar o modelo clássico da classe média para toda a população – e é aí que a gente erra… Então, o grande desafio é produzir política pública para quem, de fato, vai fazer uso dela.
Como? Pensem na saúde. É aceitável ter uma organização social privada fazendo oferta de um serviço público? Claro. Quando alguém oriundo das camadas mais pobres está sendo atendido por um médico no hospital não pergunta: “Doutor, o senhor é funcionário da prefeitura ou das Irmãs Marcelinas?”. Naquele momento, só lhe interessa se o médico é bom e se resolve o problema dele.
Deve-se, então, procurar fazer com que as grandes construtoras privadas se voltem para a locação, é isso?
Na verdade, existem construtoras que já criaram o seu braço de locação. Mas sabem para quem? Para uma parcela da classe média que percebeu que, em diferentes fases da vida, terá distintas necessidades de moradia. Uma, quando está com seus 20 e poucos anos, saindo da faculdade. Depois, quando a pessoa ainda está solteira e consegue um emprego melhor. Aí se casa. Pouco mais tarde tem um filho, uma filha; vão ser só dois? Para cada momento a necessidade de moradia será de determinado tipo. Então, durante um longo período, a pessoa precisa de 30 m², 60 m², 80 m², depois 60 m² de novo, depois 30 m². Ora, ela não vai passar, em todas as vezes, por um processo de compra e venda. Então, aluga.
Fala-se muito em “cidades inteligentes”. O que será, de fato, uma cidade inteligente, lá adiante? Será a cidade que não tiver imóveis ociosos. Quanto menor a ociosidade, mais inteligente é a cidade. O último censo, de 2010, apontou que na capital paulista havia 420 mil imóveis vagos. Se ocupássemos todos eles era capaz de a gente não ter déficit habitacional na cidade. Quer dizer, temos um monte de metro quadro ocioso, gerando prejuízo, e gente demais morando mal, morando na rua. Como resolver? Aproximando os dois lados. Um líder que possa dizer: “Vou fazer você, proprietário, perder menos dinheiro, porque seu imóvel está ocioso, e vou fazer você, liderança comunitária, acessar esses imóveis vagos”. Aí deve entrar a verdadeira política pública, que muitas vezes não precisa ter grandes orçamentos; só precisa ter comando objetivo – e punição para quem quiser manter metros quadrados ociosos dentro de cidades que se desesperam por um metro quadrado vazio. Onde não houver essa disputa por espaço, ok, mas em cidades onde a ociosidade gera mais desigualdade você tem que ter pulso e ser severo.
E não é “severo” por não gostar de proprietário que tem muita terra – é por não gostar de ociosidade. Eu, por exemplo, adoro o proprietário de muita terra, porque aí eu falo com um só; tudo fica mais fácil. Para mim, grandes fortunas mobilizadas em patrimônio imobiliário são maravilhosas, porque eu vou falar com um, dois ou três proprietários, no máximo. A lógica é você falar o seguinte: eu preciso enfrentar o déficit habitacional reduzindo a ociosidade dos metros quadrados já construídos e gerando mais metros quadrados onde eles ainda não foram construídos, que são os vazios urbanos. Ponto. Essa é a política pública real. E eu preciso produzir esses metros quadrados não para ter um proprietário e sim para servir à cidade.
A Itália mantém até hoje locação social para o microempreendedor. Por que a gente continua tendo o “ofício” na Itália – o ofício de alfaiate, do neto, do bisneto, do tataraneto? Porque ele continua recebendo subsídio para a instalação onde está a alfaiataria – ou a marcenaria etc., não importa. Mesmo sendo deste tamanhinho. É por isso que a microempresa continua forte na Itália: porque você tem locação social até para o setor produtivo, que, em vez de ser subsidiado como aqui no Brasil, é subsidiado inclusive pela instalação na qual o negócio está colocado. Quando a gente vai para o Uruguai vê que lá os sindicatos, as centrais sindicais, produziram locação social como forma de se aproximar dos sindicalizados. E o sindicato no Uruguai sempre foi muito forte. A Alemanha tem um terço de tudo o que é moradia em locação incentivada, social. E a gente acha que isso é coisa de rico… Não é coisa de rico: é coisa de quem não quer a ociosidade da cidade. Simples assim.
A ociosidade, já sabemos, leva ao espraiamento, o que obriga o poder público a subsidiar transporte para o trabalhador pobre. É um negócio maluco. Você subsidia o acesso ao trabalho porque a equação econômica para viabilizar o trabalhador não gera a condição para ele poder pagar o seu transporte até o emprego. Então vamos subsidiar uma cidade com menos ociosidade! Essa é a ideia. Agora, é preciso ter líder para comandar esse processo.
O senhor foi vereador em São Paulo de 2005 a 2021, tendo presidido a Câmara em 2011 e 2012. Entre suas realizações na área habitacional estão a lei da Função Social da Propriedade Urbana (de 2010) e a da Regularização Fundiária (2013). Como o senhor analisa, tantos anos depois, os impactos dessas legislações na cidade?
A primeira coisa é que a gente tem um problema semântico. Todo mundo odeia imposto, e a função social da propriedade ganhou, no tempo, o batismo de “IPTU progressivo”. Então, a maldição para a função social da propriedade foi ser relacionada diretamente com um imposto, que é algo odiado por todos. Na verdade, a função social da propriedade tinha que ser amada por todos, e ela é odiada por alguns porque foi vinculada ao IPTU, um imposto que chega num carnê na sua casa. Eu, na verdade, não inventei um IPTU a mais para a pessoa pagar; eu inventei uma fórmula de a cidade ser justa. O proprietário que faz acúmulo indevido do espaço urbano que recebeu investimento infraestrutural da sociedade – para ter água, esgoto, iluminação, acesso com ruas perfeitas etc. – pode ficar sentado como um Tio Patinhas em cima daquele terreno?
Vocês perguntam sobre o impacto dessa medida. Está atrasado? Sim, está atrasado, mas São Paulo avançou muito nos últimos anos nessa frente, não tenho dúvida. Primeiro tivemos a pré-notificação dos mais de mil imóveis que eram reconhecidos no cadastro da prefeitura como não cumpridores da função social da propriedade; veio depois a aprovação do Departamento de Controle da Função Social da Propriedade. Poucas cidades do planeta têm um departamento que controla a função social do solo urbano – e São Paulo é uma delas! Mais tarde tivemos a criação de uma metodologia para que a notificação fosse preservada quanto ao enfrentamento judicial – muitos proprietários recorrem à Justiça para derrubar a determinação (sem sucesso). De um período para cá, a coisa está um tanto adormecida. De todo modo, temos mais de 3 milhões de metros quadrados notificados; mais de 1.500 imóveis notificados na cidade de São Paulo. Temos um acervo que vem sendo pesquisado e meu sonho é oferecer para a sociedade – quem sabe com o envolvimento do próprio Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper – uma primeira análise do quanto as notificações funcionaram como reguladoras de preço.
Vejo, portanto, que a função social avança muito, e vai abrindo um pouco o caminho para outras cidades copiarem. Eu sinto hoje na região metropolitana de Santo André um desejo de todo mundo fazer. A coisa tem um efeito catalisador. Se começa a dar certo em uma cidade, todo mundo quer fazer na sua. Se começa a gerar receita, todo mundo quer fazer também.
E quanto à regularização fundiária?
Desse lado, eu vejo duas questões objetivas. Uma, é avançar no processo de simplificação. A gente não trouxe ainda para os ambientes municipais todas as inovações que a legislação federal já nos oferece. Direito de laje: enquanto o rico faz condomínio antes de construir a unidade e registra o novo CNPJ desse empreendimento, a periferia constrói uma, depois outra, depois outra; não tem CNPJ do todo. Nem o IBGE sabe quem está lá. Então, em primeiro lugar, falta aproveitar o que já existe na legislação federal. Exemplo: em 2013, na cidade de São Paulo, criamos a Lei 15.720/13 (respaldada pela Lei Federal 11.977/09). Ela permitiu que novos agentes, além da prefeitura, pudessem dar entrada no processo de regularização fundiária. Antes, só funcionários municipais podiam tocar todo esse processo desde o início, que envolve desde a medição do imóvel até sua representação em croquis, algo demorado, técnico e burocrático. Com a nova lei, a municipalidade permitiu que cooperativas habitacionais, associações de moradores, fundações, organizações sociais e da sociedade civil também pudessem pleitear e dar início ao processo de regularização de maneira autônoma. Na prática, nós desburocratizamos o procedimento e ampliamos drasticamente o alcance do reconhecimento fundiário em toda a cidade. Além de uma política pública mais inteligente e justa, a lei representou também uma importante redução de custos para o município. Essa mesma lógica poderia ser aplicada à questão que envolve as lajes em São Paulo, pois já há dispositivos legais em âmbito federal que possibilitam avançarmos nesse assunto.
Depois, entra outra coisa, que demanda ousadia do prefeito local: procurar fintechs para adotar regras de reconhecimento de posse a partir de blockchain. Penso em um mecanismo muito mais simples para identificar quem está em cada um dos lotezinhos dentro de uma favela, registrar isso em blockchain e esse registro ser igual ao do cartório, só que vindo da prefeitura. Aí, apresentar isso para as fintechs e dizer: “Vocês querem ajudar essa turma a viver melhor? Esses moradores têm como pagar e eu tenho como dizer quem é que está ali”.
Da mesma forma que uma rede de lojas não precisou de uma instituição financeira tradicional para fazer um gigantesco banco de venda de eletrodomésticos no Brasil, nós poderemos ter a mesma coisa em relação aos imóveis. Como eu garanto isso? Se o prefeito for corajoso e reconhecer a posse, a urbanidade, com o acesso a todas aquelas exigências mínimas que a legislação traz, estaremos criando um outro mecanismo: de reconhecimento de posse e não de propriedade, o que permitirá que o novo modelo de fintechs faça financiamentos para melhorar a vida daqueles moradores.
Essa “ousadia” do prefeito não teria um custo judicial elevado?
Sem dúvida, mas a gente vai precisar de um Judiciário que aceite ser tão “ousado” quanto o prefeito. A questão aqui é como a gente faz o alinhamento das cabeças do futuro. Porque, do contrário, vamos ficar pensando no problema do passado e na solução do passado. É impossível não ter no Judiciário um juiz que entenda de blockchain; é impossível não ter no Judiciário alguém que entenda dos novos modelos de fintech. Vou dar um exemplo. Eu sou uma Pessoa Politicamente Exposta (PPE). Então, não consigo financiamento formal para algumas compras porque o banco vai lá e fala o seguinte: “Olha, eu não posso te dar esse financiamento porque você é uma Pessoa Politicamente Exposta”. Está bem. Aí eu vou numa fintech e a fintech não entra nesse ambiente do PEP e me dá o que eu quiser. Então a lei não vale para os dois? Por que no banco tradicional a coisa pega e na fintech, não? Por que em um eu não consigo nada e noutro nem querem saber se sou ou não PEP – aliás, viram para mim e dizem que “Pep(e) era aquele ponteiro-esquerdo que jogava no Santos com Pelé”?
Estou fazendo uma brincadeira, no entanto, o fato é que precisamos encontrar um tipo de magistratura que seja mais moderna, que vá lutar ao nosso lado e não contra nós. Quem quer ser dono de uma unidade dentro de uma favela? Ninguém, porque ninguém sabe de quem é a propriedade. Mas eu quero ser o possuidor e ter garantia de que aquilo é meu porque eu vou fazer investimento, eu vou reformar o banheiro, eu vou colocar água quente, eu vou colocar um relógio e pagar a conta de luz. Não muda?! Eu não formalizei, não estou pagando a conta de luz, a conta de água, a loja de material de construção que me vendeu 400 reais de argamassa? É disso que eu estou falando. Vamos permitir que esse pessoal ingresse no mercado formal, porque, do contrário, sabe onde ele vai pegar dinheiro? Na conta do PCC [Primeiro Comando da Capital]. Vai pegar empréstimo do PCC para comprar na loja de material de construção que está lá dentro da comunidade, porque é de um outro “elemento” do PCC. Eu não quero acabar com isso na base do tiro; quero acabar com isso usando inteligência. Vou, então, criar um sistema de financiamento para quem mora na favela melhor do que aquele que o PCC pode oferecer.
O Programa Vivenda, criado em 2013 pela BrazilFoudation para democratizar o acesso a uma moradia digna, seria bom exemplo disso.
Exatamente. Fez avançar muito.
Em relação à função social da propriedade há países que o Brasil poderia usar como referência?
Não. Por incrível que pareça, não. Na realidade, essa é uma marca brasileira; os outros tentam nos copiar. Quando a gente conta o que foi feito aqui para os norte-americanos, por exemplo, eles ficam impressionados e querem levar para lá. Ou seja, o capitalismo dos Estados Unidos olha para isso de um modo até melhor do que os nossos capitalistas. Mas por quê? Porque parte do nosso capitalismo é integrado por terrenistas, que vivem do resultado da retenção especulativa do terreno urbano, como viveram no passado da fazenda improdutiva – e por isso tivemos que brigar pela reforma agrária. Por mais estranho que possa parecer, a reforma agrária foi mais eficiente que a reforma urbana.
O senhor disse que houve uma estigmatização da função social da propriedade como, no fundo, um indutor de imposto. Talvez a narrativa, e talvez a lógica a ser aplicada é a de que, com ela, o mercado está sendo incentivado. A prefeitura poderia atuar nesse sentido?
Exatamente. Do contrário, como ressaltei, fica uma leitura na qual o liberal pode dizer o seguinte: “Imagina que eu vou aceitar IPTU progressivo. Mais imposto?”. Por outro lado, qual é o liberal que não quer mais terra para construir, para gerar mais economia? A punição, quando é tratada como imposto, não é punição, porque o imposto é para todo mundo. A punição não é para todo mundo; o imposto, sim.
Todos os anos, as enchentes nas cidades brasileiras viram manchete na imprensa. Ninguém duvida que o clima esteja se tornando mais hostil. Ao mesmo tempo, todavia, é possível detectar facilmente quais são as áreas de risco de deslizamentos, de alagamentos etc. O que está faltando para que as tragédias anuais que chegam com as chuvas deixem de atingir a população, sobretudo a mais vulnerável?
A espacialização das cidades segue a perversa lógica da acumulação excessiva de capital e posse. Mesmo tendo cerca de 500 mil imóveis ociosos, a região metropolitana de São Paulo não consegue introduzir o conceito de serviço de moradia social associado à função social da propriedade de que já falamos. Temos menos de 150 mil famílias instaladas precariamente em áreas de risco 4 e 5 – risco hidrológico e geológico. Quer dizer, o encontro de conta não é tão difícil. Entretanto, só remover o risco de lugar de nada adiantará! Enfrentar o erro histórico que definiu a propriedade da terra, seja urbana ou rural, como garantidora do desenvolvimento deve ser o nosso desafio conceitual. É o uso e os diversos serviços que definirão o sucesso de nossa sustentabilidade – e não a propriedade!
O senhor falou dos avanços na função social da propriedade e na questão da regulação, destacando a importância de se ter um prefeito ousado e um Judiciário idem. Temos assistido a um processo de judicialização muito forte em relação às cidades. Em São Paulo, no ano passado, houve o adiamento da revisão do Plano Diretor, que ficou para o final de julho próximo. Três perguntas: 1)O senhor entende que essa decisão foi correta? 2) Quais consequências irá trazer? 3) Como o PD poderia ajudar a incrementar a agenda de uma política pública para a habitação?
Vou separar a judicialização do adiamento. Eu concordo em gênero, número e grau com o adiamento por uma questão puramente sanitária. Só. Se você não tem condição de trazer toda a população para participar – porque nem todos podem, como nós estamos fazendo agora, acessar meios virtuais para um encontro remoto, que lhes permitissem debater a revisão –, não é razoável ceifar parte da sociedade de uma discussão tão importante. Como não havia condições sanitárias, não dava para levar o processo adiante. Aí eu não preciso nem judicializar; só preciso ter um mínimo de bom senso.
O problema é que o adiamento não atendeu a uma questão estritamente sanitária; o adiamento se deu por conta de uma disputa política. Essa disputa contempla dois pontos de vista. Um, de quem está satisfeito com a cidade e fala o seguinte: “Eu não quero perder nada do que está dado para mim, do que foi construído pela minha família ou que foi conquistado com o suor do meu trabalho, e qualquer revisão de lei urbana como essa pode colocar em risco as conquistas que me trouxeram até aqui; eu preciso entrar no campo da disputa para mantê-los”. Quem está muito confortável vai jogar sempre na defensiva, não querendo fazer nenhum debate revisional, nenhuma discussão de desenvolvimento. E aí, usa a covid-19 para não fazer nada. O outro entendimento – que tem, felizmente, cada vez menos peso – é de quem fez a lei, quer a revisão, mas desde que ela seja feita por ele. Não aceita que o regime democrático escolha quem vai conduzir os processos revisionais. “Se eu fiz, quero sempre fazer as revisões”. Não: a definição de quem fará as revisões é de quem ganhou na urna e essa é uma condição dada. “Ah! Mas eu sou melhor que ele para fazer”. Quem diz é a urna. Então é isso: respeitar a democracia. Ganhei a eleição, tenho a “possibilidade de”. Não ganhei? Vou fazer a militância, porém para dizer qual o caminho que eu tomaria se eu estivesse no lugar do vencedor. Portanto, é um risco a gente não realizar a revisão no período em que está definido.
Contudo, considero um risco gigantesco não realizar nem a análise do que nos trouxe até aqui, nem as ofertas de alteração. Por que é importante a administração realizar a avaliação do período? Porque, ao avaliar de maneira criteriosa, eu vou dizer para a sociedade o que eu, prefeito da cidade, pretendo mudar – e os meus propósitos ficarão claros. O certo era fazer isso no processo eleitoral; dizer o seguinte: “Como está prevista a revisão para o ano que vem, quero colocar no meu plano de governo o que eu pretendo mudar, os propósitos da mudança”. Isso porque, nesse caso, tudo fica registrado no TRE, para que todo mundo saiba. A gente não chegou a esse grau de sofisticação das campanhas eleitorais, exigindo essas posturas dos candidatos, mas está avançando. Só o fato de ter registro de plano de governo já é bom.
E quanto ao prazo, o senhor concorda com o período de dez anos para revisão do Plano Diretor?
Eu sempre acho um risco impor períodos longos, porque se você erra, é obrigado a ficar com algo errado por, no caso, dez anos. É preciso ter um regime de planejamento que permita correções em dois anos. Identificou o erro flagrante? Vai lá e corrige. Deve-se ter a coragem e a humildade de reconhecer erros. E permitir que o regime democrático traga inovações que melhorem a legislação; tornem as leis mais acessíveis, menos técnicas, ampliando, portanto, o volume de pessoas que faz uso delas e as compreende. Ao compreendê-las, mais gente pode qualificá-las. A sociedade deve ser chamada a participar, com seus diversos atores, e num ambiente de socialização do conhecimento. Escutar o que todo mundo está falando. Eu tenho que ouvir todos – todos! Essa é uma questão emblemática para mim. Todos têm o direito de querer o que acham que é bom para si. O que eu não posso é tornar a vontade de um a vontade da sociedade. Mas não posso punir ninguém por querer o que quer, entendem? O que preciso é mostrar, de maneira muito responsável, que aquele caminho que ele está propondo não é bom para a cidade, não é bom para o coletivo e que existe uma alternativa, ou então que vamos descobri-la juntos. O que estou querendo dizer, no fundo, é isto: a gente tem que reduzir o grau de arrogância tecnocrática porque, quanto mais você tiver arrogância tecnocrática, mais você afasta tanto o que acha que sabe mais que você – porque, digamos, tem mais dinheiro – como a população de menor renda, que fica até com medo de se posicionar.
A questão que intriga é que a gente discutiu todos esses problemas e todas as soluções propostas, de diferentes matizes políticas, e, a bem da verdade, a cidade continuou crescendo mal – em especial sobre áreas de preservação, produção de água, mananciais. Agora temos o incremento substantivo da população de rua. Enfim. A prefeitura tem até dinheiro, porém não consegue realizar. Ou seja, nem chegamos a testar modelos.
É verdade. A gente nunca teve tanto dinheiro com tão pouco projeto. A gente tem 30 bilhões de reais [na prefeitura de São Paulo], dos quais metade deles não está destinada a nada. Faz sentido eu ter 30 bilhões aplicados, dos quais 15 bilhões não têm nenhuma destinação, e eu não pegar só o serviço da aplicação e não reduzir o flagelo que é existirem 50 mil pessoas morando na rua? Está tudo errado – e, pior, não tem projeto. Por que “pior”? Porque vai se investir mal e investir mal gerará prejuízo lá na frente – e uma hora não vai ter mais dinheiro.
Uma posição que é muito cara ao Laboratório é a de formação de uma concertação, um pacto geral, como foi feito em Medellín, ou como se fez, tempos atrás, no Espírito Santo. Com tal arranjo, as sociedades e as cidades deram saltos importantes. Esse pacto no Brasil parece muito distante num cenário político fragmentado – uma polarização já histórica –, e, mais do que isso, em uma sociedade que carece de um nível maior de compreensão de que a empatia é fundamental. Para darmos esse passo, qual seria a instância política decisiva?
Na minha opinião, é só o prefeito que tem essa condição. Quando se analisam os resultados absolutamente positivos de algumas metrópoles mundiais, a gente nota que em um certo período teve um prefeito que fez a diferença. Muitas vezes, essa figura nem foi mais do que prefeito em sua carreira política. A única coisa que queria, realmente, era ser prefeito, um bom prefeito. Peguemos alguns casos históricos, como o de Bogotá: por que deu certo? Porque teve um líder, um prefeito, que fez essa concertação. Em Bonn você teve isso, em Berlim, em Chicago. Sempre um gestor local. Por quê? Porque é ele que toca na população. O presidente vai resolver? Não vai. O governador? Esquece.
Aliás, penso que não deveríamos ter governo de estado. Deveríamos ter governo central e municipal. Só. As estruturas estaduais criaram justiça estadual, polícia estadual, tudo em duplicidade – e a gente não precisava de nada disso. Não teríamos governo estadual, deputado estadual, entendem? Isso era necessário no passado, porque a gente não tinha relações de comunicação; você não sabia o que estava acontecendo no Norte, no Nordeste. Agora eu ligo o computador e vejo as ruas do Nordeste nos sistemas de controle de cidades inteligentes; eu vejo neste minuto quantos carros estão passando em uma rua de Boa Viagem. No passado, levava três meses para você saber o que estava acontecendo por lá. O problema é que nós temos um conservadorismo político que guarda a reputação de ser deputado estadual, presidente da Assembleia, promotor de Justiça do estado. Estamos errando. É o mayor que importa, o prefeito, o gestor local. Quando muito, em cidades grandes como a nossa, é o prefeito e seus quatro, cinco subprefeitos, que por ele foram escolhidos para fazer a transformação em territórios que precisam disso.
O senhor sempre defende a necessidade de oferecermos uma melhor formação para o Legislativo. Isso valeria também para o Judiciário, o Ministério Público?
É que o Judiciário e o Ministério Público têm uma obrigação de conhecimento a partir do que está na lei. O parlamentar tem que ser preparado para fazer a lei de forma a não gerar mais trabalho para aquelas duas instâncias. Porque, na verdade, o que gera nó é lei ruim – e muita gente produz lei ruim porque atende seus interesses. Então o que a gente precisa é preparar bem quem faz nascer. A nossa legislação recente de planejamento urbano tem sido tão ruim, tão ruim que não passa no Judiciário. Urgente, portanto, nesse momento, é a qualificação do legislativo – e, para ser sincero, não apenas o municipal. O Parlamento vem ganhando poder. Ganhou poder para derrubar a presidente da República, fazer um pacto depois disso e outro na eleição seguinte – pactos para o bem e para o mal; o fato é que o Legislativo ganhou relevância. Ora, se esse poder da República tiver relevância e não tiver qualidade, vai ser um inferno. Prefeito, governador e presidente você escolhe um só. Parlamentares você escolhe 55 no caso da Câmara de São Paulo, 94 no caso da Assembleia Legislativa, 513 na Câmara Federal. São tantos que então você precisa pegar uma porçãozinha e falar: “Nesses aqui eu vou investir”. Por que há tantos movimentos investindo na formação de parlamentares? Porque eles enxergaram essa necessidade. E a coisa precisa ser rápida – ainda está muito lenta.
O senhor está falando agora em qualificar o parlamentar. E há pouco disse que existe dinheiro na prefeitura de São Paulo, por exemplo, porém não há projeto. Juntando as duas pontas: não haveria necessidade de qualificar também o gestor para melhoria do gasto público? Um exemplo disso é que o Brasil gasta uma quantidade enorme de dinheiro com a agenda social e a situação no país nessa frente continua péssima.
Na verdade, quero frisar, já temos instrumentos para isso. O fato de a cidade de São Paulo ter na sua Lei Orgânica a obrigação de o prefeito eleito apresentar em noventa dias um plano de metas que remeta ao compromisso eleitoral que ele fez vai criando essa obrigação. Chegará o dia em que teremos planos de períodos maiores do que de um mandato.
Eu estou desenvolvendo isso aqui em Santo André. Temos um projeto que se chama Santo André 500 Anos, voltado a pensar a cidade para quando ela for completar cinco séculos – em 2053. [No dia 8 de abril de 1553, o governador-geral Tomé de Sousa aprovou o pedido de João Ramalho para transformar a região em que vivia na Vila de Santo André da Borda do Campo]. Eu fiz uma proposta para um grupo de prefeitos: eles deveriam criar o São Paulo 500 Anos. Em 2032 o nosso estado completará cinco séculos; então é um planejamento para uma década, ou seja, é mais do que a gestão do próximo chefe do executivo municipal. E quem vai ajudar a montar isso? Os prefeitos que estão no exercício hoje e que vão dizer como o estado tem que se relacionar com eles para produzir territórios melhores, sempre nessa ideia de que quem segura o termômetro da vida é quem está no município: são os prefeitos e os vereadores. Eu não consigo ter esse tipo de articulação com 2 mil vereadores, mas eu consigo com cem prefeitos – que vão dialogar com 2 mil vereadores. Aí sim eu começo a criar o ambiente capaz de gerar um repertório de planejamentos, de projetos, de programas. Aí sim você ganha escala. Porque quando você põe 100 prefeitos juntos definindo projetos para o estado, você dá a eles também a condição de adaptar e promover o que é preciso para os seus próprios municípios. Um exemplo. Você tem um programa como o “Bom Prato”, financiado pelo estado, mas não vê prefeito financiando um, digamos, “Melhor Prato”? Por que não? E se um inaugurar o “Melhor Prato”, o outro vai querer fazer o “Prato Ótimo”, entendem? Ninguém discute a necessidade de investir em saúde alimentar. A pandemia nos mostrou que parte da população morre de fome. Se não morre, come coisa que ia virar sabão. Então, este é o desafio: dizer quais os pactos que todo mundo tem que fazer.
Em seu cargo de superintendente de Planejamento e Assuntos Estratégicos de Santo André, o senhor atua em contato com todo o secretariado. Como está trabalhando para reinventar a cidade em um cenário de desindustrialização? E, aproveitando: uma de suas primeiras ações foi fazer um portal de dados. O senhor poderia falar um pouco sobre a importância desse tipo de material para o planejamento urbano?
Primeiro vou falar das vantagens que eu tenho quando chego a uma cidade sem o coeficiente político local. Isso facilitou demais a minha vida. O fato de eu não ser um ator político da região, gerou, claro, um incômodo inicial, mas também uma vantagem, porque eu não disputo com ninguém daqui. Costumo falar: “Eu não concorro com nenhum de vocês, portanto eu sou o garçom. Me deixem trazer o menu de opções que vocês têm. Eu só quero o melhor para todo mundo”. Na hora em que você não tem coeficiente político, você recebe muita informação.
Pois bem. A primeira coisa que eu fiz aqui, de fato, foi o SIGA, que é o Sistema de Informações Geográficas Andreense, que tem mais de duzentas camadas; um trabalho realizado pelos funcionários públicos usando plataforma aberta. É um negócio absolutamente revolucionário – e o meu desejo é que todos os municípios possam ter algo similar, porque dá para construir, em especial, a base de informação para você incrementar uma política pública de habitação, assunto que abordamos nesta conversa. Com o uso de uma plataforma com as características do SIGA, você usa inteligência para reduzir custos, melhorando, portanto, o gasto público.
Vocês mencionaram a desindustrialização. É verdade, o ABC – que foi pioneiro na indústria automobilística, portanto, passou por aqui o desenvolvimento do próprio país – hoje está mergulhado em dois processos vigorosos: o carro perdendo a importância, e mais do que isso, o petróleo perdendo a importância. A região é um polo petroquímico, mas eu quero que seja bioquímico, farmoquímico. Não vou perder o que já existe; a ideia é ir transformando gradativamente. Se eu tenho a inteligência química, vou poder trabalhar com bateria, algo fundamental para o novo carro, para o novo modelo que as pessoas usarão para se deslocar. O gestor público é senhor da reinvenção. Ele ele tem que pegar tudo o que está à sua disposição e fazer o que é preciso, com o menor custo. Para tanto, ele não pode abrir mão da academia. No final do ano passado, realizamos aqui um primeiro congresso universitário. Mais de 500 projetos foram apresentados. Ou seja, estamos começando a estimular no ambiente acadêmico essa nova lógica.
É uma experiência que o senhor pode aproveitar à frente do Grupo de Trabalho sobre moradia do Laboratório Arq.Futuro de Cidades.
Isso. A contribuição que pretendo dar ao Laboratório é o da socialização do conhecimento. Produzir as evidências que trarão para dentro do Insper os diversos atores que podem operar essas evidências – os dados, o conhecimento – para ajudar na formulação de políticas públicas. E aí eu volto para a vantagem de não ser político de Santo André: o acesso à informação da cidade com a qual eu estou fazendo todos os testes estarão à disposição do Laboratório. Estou tentando transformar Santo André em uma “cidade-campus”, com seus dados abertos a todos os pesquisadores. Se um contingente maior de pessoas tem acesso às informações, isso só pode melhorar a minha decisão na hora em que eu for tomá-la, pois mais gente terá condição de alertar: “Cuidado, você está errado aqui, ali”. O melhor dado é o dado público. Só precisamos lê-lo corretamente.
Por exemplo?
Posso citar o DOT [Desenvolvimento Orientado ao Transporte]. Ele é muito usado. Agora, peguem São Paulo, que intensificou a utilização dos corredores. Em algumas cidades, a distância da periferia para o centro é de 3 quilômetros. Então, essa distância não evidencia a necessidade de fortalecer tanto o eixo. Aliás, de tanto fortalecer, você pode destruí-lo; torná-lo horroroso. Então, esse cuidado nós temos tomado. Eu digo: “Calma! Não dá para copiar tudo o que tem sido feito em São Paulo”.
Ciência precisa, vamos dizer deste modo, “rimar” com inteligência.
Exatamente. Existe uma ciência de produção de cidade – como existe a ciência da produção do campo. Eu sempre brinco: “Se a gente tem a Embrapa, que é uma das maiores empresas públicas do planeta para fazer um campo saudável e eficiente, cadê a Embrapa da cidade? No Laboratório, vamos trabalhar com essa perspectiva.
O senhor, claro, tem uma larga experiência na vida pública, em diferentes instâncias. Ao mesmo tempo, é um ativista da cidade. Qual mensagem o senhor deixaria para o jovem urbano de hoje, que se lança no ativismo, que se empenha por uma consciência cidadã – porque a cidade é feita pelo cidadão, não importa em que posição ele se encontre. Cidade é, sobretudo, um exercício de cidadania. O que o senhor diria a ele?
Algo muito simples: empatia cívica. Empatia não é se colocar no lugar do outro? Vamos agora nos colocar no lugar do outro coletivamente – isso é empatia cívica. Porque assim a gente vai começar a encontrar as soluções para os problemas.
É impossível que alguém ache natural o que se vê quando a gente passa atualmente pela praça da República, pela Praça da Sé. Aquilo virou um campo de refugiados – refugiados urbanos. Se aquilo não te agride; se você não fala: “Caramba, não vou fazer nada para mudar isso?!”… Bem, se for assim, você não está vivendo a cidade. Porque a cidade é gerada por esse espírito cívico de cidadania. E cidadania é mais do que “estando confortável para mim, tudo bem”. Então a minha mensagem é a seguinte: a transformação urbana não se dará só pelo prefeito, até porque só elegeremos um bom prefeito quando tivermos empatia cívica. É preciso encontrar um líder. Não é “gestor” simplesmente, pelo amor de Deus! Gestor eu contrato. É líder. É condutor de processos, é quem traz muita gente para o próprio lado; gente diferente, gente que disputou contra você até o minuto anterior. E a cidade também nasce de cada um, nasce do fato de cada um se envolver com as tarefas cívicas e políticas.
Eu tenho um certo otimismo porque acho que está vindo aí uma geração melhor do que a nossa. A gente passou por um buraco difícil que foi o da negação da política. Felizmente, estamos conseguindo sair disso. A política é boa. Quem faz com que ela se torne ruim somos nós. O homem ruim vai fazer política ruim, vai fazer tudo ruim. A sociedade não é ruim, a sociedade é boa. É que ela se cansou e aí foi deixando o discurso da negação da política ocupar espaço. Agora a gente está vendo que tem recuperação. A pandemia, pelo modo mais sofrido, abriu o nosso olho. A sociedade é solidária. Ela sente que precisa produzir cidades que tenham equidade: de gênero, de oportunidades etc. Não é só fazer o discurso da igualdade, do enfrentamento das diferenças. Não é nada disso. É equidade. É amizade cívica, é cidadania. É dar a mão – e, sobretudo, confiar no diferente. Não é no clube dos iguais que sairão as soluções para os diferentes, e sim no grande vendaval de ideias, no grande debate de ideias dos diferentes. Tenho paixão por isso; é o que me preenche. Tenho paixão pela cidade. Monto na minha bicicletinha e saio para a rua. “Pra onde você vai?”, me perguntam. “Vou andar, vou ver o quanto esta cidade é linda – o quanto ela precisa de mim ainda, o quanto posso fazer por ela”. E rodo, rodo, rodo.
Fonte: Insper Conhecimento